Ó meu Deus, meu Deus! Que de misérias e enganos não experimentei então, quando se
me propunha, em criança, como norma de bem viver, obedecer os mestres que me instigavam a
brilhar neste mundo, e me ilustrar nas artes da língua, fiel instrumento para obter honras humanas
e satisfazer a cobiça! Mudaram-me à escola, para que aprendesse as letras, nas quais eu,
miserável, desconhecia o que havia de útil. Contudo, se era preguiçoso para aprendê-las, era
fustigado, num sistema louvado pelos mais velhos; muitos deles, que levavam esse gênero de
vida antes de nós, nos traçaram caminhos tão dolorosos pelos quais éramos obrigados a
caminhar, multiplicando assim o trabalho e a dor aos filhos de Adão.
Mas, por sorte, encontrei homens que te invocavam, Senhor, e com eles aprendi a te
sentir, quanto possível, como a um Ser grande que podia escutar-nos e vir em nosso auxílio,
embora sem a percepção dos sentidos. Ainda menino, pois, comecei a invocar-te como refúgio e
amparo e, para te invocar, desatei os nós de minha língua; e, embora pequeno, te rogava já com
grande fervor para que não me açoitassem na escola. E quando não me escutavas, o que servia
para meu proveito os mestres, assim como meus próprios pais, que certamente não desejavam o
meu mal, riam-se daquele castigo, que então era para mim grave suplício.
Porventura, Senhor, haverá alguma alma tão grande, unida a ti com tão ardente afeto, pois
isto também pode ser produzido pela estultice – repito, uma alma que alcance tal grandeza de
ânimo que despreze os cavaletes e garfos de ferro, e os demais instrumentos de martírio – para
fugir dos quais se te dirigem súplicas de todas as partes do mundo? Haverá uma alma que assim
os despreze – rindo-se dos que têm deles tanto horror – como se riam nossos pais dos tormentos
que éramos castigados por nossos mestres quando meninos? Porque, na verdade, não os
temíamos menos, nem te rogávamos com menor fervor para que nos livrasses deles.
Contudo, pecávamos por negligencia escrevendo ou lendo, estudando menos do que nos
era exigido; e não era por falta de memória ou de inteligência, que para aquela idade, Senhor, me
deste de modo suficiente, senão porque eu gostava de brincar, embora os que nos castigavam
não fizessem outra coisa. Mas os jogos dos mais velhos chamavam-se negócios, enquanto que os
dos meninos eram por eles castigados, sem que ninguém se compadecesse de uns e de outros,
ou melhor, de ambos. Um juiz sensato poderia aprovar os castigos que eu, menino, recebia
porque jogava bola, e porque com este jogo atrasava o aprendizado das letras, com as quais,
adulto haveria de jogar menos inocentemente?
Acaso fazia outra coisa naquele que me castigava? Se nalguma questiúncula era vencido
por algum colega seu, não era mais atormentado pela cólera e pela inveja do que eu, quando uma
partida de bola era vencido por meu companheiro?
Agostinho de Hipona "Confissões" Capítulo IX
me propunha, em criança, como norma de bem viver, obedecer os mestres que me instigavam a
brilhar neste mundo, e me ilustrar nas artes da língua, fiel instrumento para obter honras humanas
e satisfazer a cobiça! Mudaram-me à escola, para que aprendesse as letras, nas quais eu,
miserável, desconhecia o que havia de útil. Contudo, se era preguiçoso para aprendê-las, era
fustigado, num sistema louvado pelos mais velhos; muitos deles, que levavam esse gênero de
vida antes de nós, nos traçaram caminhos tão dolorosos pelos quais éramos obrigados a
caminhar, multiplicando assim o trabalho e a dor aos filhos de Adão.
Mas, por sorte, encontrei homens que te invocavam, Senhor, e com eles aprendi a te
sentir, quanto possível, como a um Ser grande que podia escutar-nos e vir em nosso auxílio,
embora sem a percepção dos sentidos. Ainda menino, pois, comecei a invocar-te como refúgio e
amparo e, para te invocar, desatei os nós de minha língua; e, embora pequeno, te rogava já com
grande fervor para que não me açoitassem na escola. E quando não me escutavas, o que servia
para meu proveito os mestres, assim como meus próprios pais, que certamente não desejavam o
meu mal, riam-se daquele castigo, que então era para mim grave suplício.
Porventura, Senhor, haverá alguma alma tão grande, unida a ti com tão ardente afeto, pois
isto também pode ser produzido pela estultice – repito, uma alma que alcance tal grandeza de
ânimo que despreze os cavaletes e garfos de ferro, e os demais instrumentos de martírio – para
fugir dos quais se te dirigem súplicas de todas as partes do mundo? Haverá uma alma que assim
os despreze – rindo-se dos que têm deles tanto horror – como se riam nossos pais dos tormentos
que éramos castigados por nossos mestres quando meninos? Porque, na verdade, não os
temíamos menos, nem te rogávamos com menor fervor para que nos livrasses deles.
Contudo, pecávamos por negligencia escrevendo ou lendo, estudando menos do que nos
era exigido; e não era por falta de memória ou de inteligência, que para aquela idade, Senhor, me
deste de modo suficiente, senão porque eu gostava de brincar, embora os que nos castigavam
não fizessem outra coisa. Mas os jogos dos mais velhos chamavam-se negócios, enquanto que os
dos meninos eram por eles castigados, sem que ninguém se compadecesse de uns e de outros,
ou melhor, de ambos. Um juiz sensato poderia aprovar os castigos que eu, menino, recebia
porque jogava bola, e porque com este jogo atrasava o aprendizado das letras, com as quais,
adulto haveria de jogar menos inocentemente?
Acaso fazia outra coisa naquele que me castigava? Se nalguma questiúncula era vencido
por algum colega seu, não era mais atormentado pela cólera e pela inveja do que eu, quando uma
partida de bola era vencido por meu companheiro?
Agostinho de Hipona "Confissões" Capítulo IX