Por fim, deve-se elevar o coração e subir ao monte da mirra com a noiva. Aqui está crucificado Jesus Cristo, o cabeça de todos os santos, príncipe de todos os sofredores, a respeito do qual muitos escreveram muito e todos tudo, como convém. Sua memória é recomendada à noiva, onde é dito: "Põe-me como sinal sobre teu coração, e como marca em teu braço". (Ct 8.6) O sangue deste cordeiro, pintado na soleira, mantém afastado o anjo executor. A noiva é louvada porque seu cabelo é como a púrpura do rei (isto é, ele fica vermelho por causa da lembrança da paixão de Cristo). Esta é a arvore que Moisés recebeu ordem de pôr nas águas de Mara, ou seja, nos amargos sofrimentos, e elas se tornaram doces. Não existe nada que esse sofrimento não adoce, inclusive a morte, como diz a noiva: "Seus lábios são como lírios que destilam a primeira mirra". (Ct 5.13) Que relação existe entre lírios e lábios, visto que estes são vermelhos e aqueles brancos? Em todo caso ela fala em sentido místico: As palavras de Cristo são as mais cândidas e puras, nas quais nada há de cruento amargor ou malignidade, mas suavidade e meiguice; e assim mesmo destilará delas a mirra primeira e seleta e nos persuadirá a aceitá-la (isto é, a morte amarguíssima). Esses lábios puríssimos e dulcíssimos têm o poder de fazer doce, bela, pura e aceitável a morte mais amarga, que (como a primeira mirra) tira de uma só vez toda a podridão do pecado. Como acontecerá isto? Ao ouvires que Jesus Cristo, o Filho de Deus, consagrou e santificou todos os sofrimentos, inclusive a própria morte, com seu santíssimo contato, que bendisse a maldição, glorificou a ignomínia e enriqueceu a pobreza, de sorte que a morte tem que ser a porta para a vida, a maldição a origem da bendição, a ignomínia a mãe da glória. Como ainda podes ser duro e ingrato, que não desejes e ames todos os sofrimentos, tintos pela puríssima carne e sangue de Cristo, e por isso santificados, inofensivos, salutares, benditos e abençoados para ti?
Pois se com o tato de sua puríssima carne santificou todas as águas para o Batismo, sim, também toda a criação, quanto mais terá santificado para o batismo do Espírito ou do sangue, pelo mesmo tato de sua puríssima carne e sangue, toda morte, todos os sofrimentos, todas as injustiças, toda maldição, toda ignomínia! Como Ele próprio diz a respeito deste mesmo batismo do sofrimento, em Lucas 12.50: "Tenho que ser batizado com um batismo, e como sou atribulado até que seja realizado"! Vês o quanto é atribulado, o quanto anseia, o quanto deseja santificar os sofrimentos e a morte e torná-los amáveis. Pois viu como nós andávamos apavorados pelos sofrimentos, viu a morte apavorar e horrorizar-nos. Por isso, como pastor bondosíssimo e médico fidelíssimo, apressa-se a pôr um termo a esse nosso mal, e se angustia por morrer e, por seu tato, encarecer-nos os mesmos. Deste modo a morte do cristão deve ser considerada igual à serpente de bronze de Moisés, que ainda preserva o aspecto de serpente em todos os sentidos, mas é totalmente sem vida, sem movimento, sem veneno, sem mordida. Assim, aos olhos dos ignorantes, os justos parecem morrer, no entanto estão em paz. Somos semelhantes aos que morrem, e exteriormente nossa carne não é diferente da dos outros. A realidade, porém, é outra, pois para nós a morte está morta. Assim também todos os demais sofrimentos se assemelham aos sofrimentos dos outros, mas apenas na aparência, porque na verdade nossos sofrimentos são o começo da impassibilidade, assim como a morte é o começo da vida. É isso também o que Ele diz em Jo 8.51: "Quem guardar a minha palavra não verá a morte eternamente". De que modo não a verá? Porque, morrendo inicia a vida, de sorte que, por causa da vida que ele vê não poderá ver a morte. Aqui a noite se ilumina como o dia, porque a luz da vida insipiente é mais clara do que a da morte desinente. Isto é destinado a todos os que creem em Cristo, não, porém, aos incrédulos.
Visto que beijas, amas e abraças a túnica de Cristo, os vasilhames, as jarras e tudo o que Cristo tocou e de que fez uso, considerando-os as mais doces relíquias, como que consagradas por seu tato, porque não amarias, abraçarias, beijarias muito mais os castigos, os males do mundo, a ignomínia e a morte não só consagrados por seu tato, mas também tingidos e benditos por seu puríssimo sangue, e, além disso, abraçados com a vontade do coração e por um amor preocupado ao máximo? Em especial porque neles há para ti méritos, recompensas, bens muito maiores do que naquelas relíquias, porque neles te é oferecida a vitória sobre a morte, o inferno e todos os pecados, enquanto que naquelas nada disso é oferecido. Oh, se fosse concedido contemplar o coração de Cristo quando, pendendo na cruz, se angustiou para tornar a morte morta e desprezível; com quanto ardor e carinho abraçou ma morte e castigo por nós, pessoas tímidas e horrorizadas com a morte e castigos; com que satisfação tomou este cálice por nós enfermos, para que não tivéssemos medo de bebê-lo também, porque percebemos que nada de mal lhe aconteceu, mas, ao ressurgir, lhe advieram somente coisas boas. Assim, sem dúvida, a primeira mirra que destila de seus lábios e é encarecida pelas palavras de Cristo seria agradabilíssima e dulcíssima como o perfume e a beleza dos lírios. Assim também diz Pedro, em 1 Pe 4.1: "Tendo Cristo sofrido na carne, armai-vos também vós com o mesmo pensamento". E Paulo em Hb 12.3: "Considerai aquele que suportou tal contradição contra si por parte dos pecadores, para que não desanimeis, desistindo em vosso ânimo".
Portanto, se das imagens anteriores até aqui colocadas abaixo de nós e ao nosso lado aprendemos o mal com paciência, com certeza nesta última, onde já somos colocados acima e fora de nós, arrastados para dentro de Cristo, colocados acima de todos os males, eles não apenas devem ser tolerados por nós, mas inclusive amados, desejados, buscados. E quanto mais distante alguém está deste sentimento tanto menos poder tem nele o sofrimento de Cristo, como acontece naqueles que usam os sinais e as armas de Cristo contra o mal e a morte, para não precisarem sofrer nem morrer, o que é totalmente contrário às intenções da cruz e da morte de Cristo. Por esta razão é necessário, nessa sétima imagem, que todo o mal que sofremos seja absorvido e consumido, para que já não apenas não doa, mas alegre, se é que esta imagem penetra em nossos corações e se fixa no íntimo do sentimento de nossa mente.
OBRAS SELECIONADAS DE LUTERO V2 CAPÍTULO 7 PG 29-31 "O PROGRAMA DA REFORMA"