Aqui temos que colocar diante dos olhos a grande quantidade de adversários e pessoas más, e neles é preciso ver primeiro quantos males não causaram ao nosso corpo, bens, honra e alma, mas que queriam nos causar, não tivesse Deus disposto as coisas de tal forma que não o puderam; e quanto mais elevada a posição de alguém e quanto mais amplo seu domínio, a tanto mais de tais perseguições, maquinações, injúrias e provações dos inimigos está exposto; e em todas elas pode reconhecer e experimentar a bem presente mão de Deus. Admira se de vez em quando somos atingidos por um deles? Por outro lado é preciso ver também os próprios males deles, não para neles exultar, mas para nos compadecer. Pois também eles estão igualmente expostos a todos estes mesmos males como nós, como é fácil deduzir das imagens precedentes. Contudo, nisso são mais miseráveis do que nós, porque se encontram fora de nossa comunhão tanto corporal quanto espiritual. Pois este mal que sofremos nada é comparado com aquilo que eles são em pecados, infidelidade, sob a ira de Deus, sob o império do diabo, os mais miseráveis escravos da impiedade e do pecado, de sorte que, se todo o mundo os maldissesse, nada pior lhes poderia ser desejado. Se pensássemos em tudo isto de forma correta, veríamos, ao mesmo tempo, com quanto mais benigno favor de Deus sofremos, na fé, no reino de Cristo, no serviço de Deus, apenas um mal físico pequeno, que nem deveríamos sentir em meio à opulência de tantas coisas excelentes, pois inclusive a miséria daqueles deve tocar o cristão e o coração piedoso de tal modo que considere seus próprios incômodos delícias. Assim ordena Paulo em Fp 2.4ss.: "Cada um considere o que é dos outros, não o que é seu. Tende em vós o sentimento que estava também em Cristo Jesus, o qual, estando em forma de Deus, assumiu forma de servo", etc., quer dizer, por um sentimento piíssimo, vestiu nossa forma de ser, comportando-se em nossos males como se fossem seus próprios. Desta maneira, não se considerou a si mesmo e seus bens e deles se esvaziou, para ser encontrado feito inteiramente à semelhança dos seres humanos, não rejeitando nada de humano como estranho, ocupado apenas com nossos males.
Animados por tal sentimento e comovidos por tal imagem, os santos costumam orar pelos maus, inclusive pelos inimigos, e fazer tudo de acordo com o exemplo de Cristo, e, esquecidos de suas injúrias ou direitos, costumam preocupar-se como libertar aqueles de seus males, pelos quais são torturados de modo incomparavelmente maior do que por seus males corporais, como escreve S. Pedro a respeito de Ló em 2 Pe 2.8: "Habitando entre aqueles que, dia a dia, torturavam a alma justa com obras iníquas". Vês, portanto, que grande abismo de males se mostra aqui, bem como a chance de comiserar e compadecer, e, ao mesmo tempo, de esquecer-se de nosso pequeno mal, se a caridade de Deus estiver em nós, e como é nada aquilo que Deus permite que soframos comparado com o que aqueles sofrem. A razão de isso nos comover tão pouco está no fato de o olho do coração não ser suficientemente puro, que jaz sob o pecado, ou seja, separado de Deus e possesso do diabo. Pois quem é tão duro que não se consumisse diante do aspecto digno de comiseração daqueles que estão deitados diante das portas das igrejas e nas vias públicas, com os rostos desfigurados, os narizes e olhos corroídos e outros membros consumidos por pus e podridão fedorenta, de sorte que a mente se horroriza só ao pensar nisto, muito menos os sentidos o poderiam suportar? Ou que intenciona Deus com estas lamentáveis monstruosidades de nossa carne e imagem fraterna a não ser abrir os olhos de nossa mente, para que vejamos com que aspecto tanto mais horrível a alma do pecador ostentará seu pus e podridão, ainda que ele mesmo viva em púrpura e ouro, em rosas e lírios, como se fosse filho do paraíso? E quantos pecadores há no mundo para cada um daqueles putrefatos?
Na verdade esses males, infinitos quanto a sua magnitude e a sua quantidade, quando desconsiderados nos próximos, fazem com que um mal nosso, o mínimo que seja, venha a ser considerado o único e o máximo. Mais ainda: também em males corporais aqueles têm que estar em condições piores do que nós. Como podem eles, pergunto eu, encontrar prazer doce e puro, mesmo que tivessem e conseguissem tudo o que querem, enquanto sua consciência não pode estar tranquila? Ou existe mal mais atroz do que o tumulto da consciência causticante? Pois diz Isaías 57.20s.: "Os ímpios são como um mar em fervura, que não pode aquietar-se e cujas ondas resultam em lama e lodo. Não há paz para os ímpios, diz o Senhor Deus". Por isso pode-se observar neles o que está escrito em Dt 28.65ss.: "O Senhor te dará um coração temeroso, olhos deficientes e uma alma consumida pela tristeza, e a tua vida estará como que pendente diante de ti. Terás medo dia e noite, e não confiarás em tua vida. Pela manhã dirás: 'Quem me dará a noite'? E de noite dirás: 'Quem me dará a manhã'? Por causa do temor de teu coração com o qual serás aterrorizado, e por causa do que verás com os teus olhos". Em resumo: Quem considerasse todos os males dos maus, sejam amigos, sejam inimigos, com sentimento conveniente, este não apenas esqueceria seus males e constataria que nada está sofrendo, mas, na verdade, também desejaria ardentemente, com Moisés e com o apóstolo Paulo, que lhe fosse concedido morrer por eles, tornar-se anátema de Cristo e ser riscado do livro da vida, como está escrito em Rm 9.3, por meio do que aqueles seriam salvos. Ardendo deste zelo e fogo, Cristo por nós morreu e desceu aos infernos, deixando-nos o exemplo, para que também nós estejamos preocupados com os males dos outros desta mesma maneira, esquecidos dos males, sim, que os desejemos.
OBRAS SELECIONADAS DE LUTERO V2 CAPÍTULO 5 PG 24-26 "O PROGRAMA DA REFORMA"
Animados por tal sentimento e comovidos por tal imagem, os santos costumam orar pelos maus, inclusive pelos inimigos, e fazer tudo de acordo com o exemplo de Cristo, e, esquecidos de suas injúrias ou direitos, costumam preocupar-se como libertar aqueles de seus males, pelos quais são torturados de modo incomparavelmente maior do que por seus males corporais, como escreve S. Pedro a respeito de Ló em 2 Pe 2.8: "Habitando entre aqueles que, dia a dia, torturavam a alma justa com obras iníquas". Vês, portanto, que grande abismo de males se mostra aqui, bem como a chance de comiserar e compadecer, e, ao mesmo tempo, de esquecer-se de nosso pequeno mal, se a caridade de Deus estiver em nós, e como é nada aquilo que Deus permite que soframos comparado com o que aqueles sofrem. A razão de isso nos comover tão pouco está no fato de o olho do coração não ser suficientemente puro, que jaz sob o pecado, ou seja, separado de Deus e possesso do diabo. Pois quem é tão duro que não se consumisse diante do aspecto digno de comiseração daqueles que estão deitados diante das portas das igrejas e nas vias públicas, com os rostos desfigurados, os narizes e olhos corroídos e outros membros consumidos por pus e podridão fedorenta, de sorte que a mente se horroriza só ao pensar nisto, muito menos os sentidos o poderiam suportar? Ou que intenciona Deus com estas lamentáveis monstruosidades de nossa carne e imagem fraterna a não ser abrir os olhos de nossa mente, para que vejamos com que aspecto tanto mais horrível a alma do pecador ostentará seu pus e podridão, ainda que ele mesmo viva em púrpura e ouro, em rosas e lírios, como se fosse filho do paraíso? E quantos pecadores há no mundo para cada um daqueles putrefatos?
Na verdade esses males, infinitos quanto a sua magnitude e a sua quantidade, quando desconsiderados nos próximos, fazem com que um mal nosso, o mínimo que seja, venha a ser considerado o único e o máximo. Mais ainda: também em males corporais aqueles têm que estar em condições piores do que nós. Como podem eles, pergunto eu, encontrar prazer doce e puro, mesmo que tivessem e conseguissem tudo o que querem, enquanto sua consciência não pode estar tranquila? Ou existe mal mais atroz do que o tumulto da consciência causticante? Pois diz Isaías 57.20s.: "Os ímpios são como um mar em fervura, que não pode aquietar-se e cujas ondas resultam em lama e lodo. Não há paz para os ímpios, diz o Senhor Deus". Por isso pode-se observar neles o que está escrito em Dt 28.65ss.: "O Senhor te dará um coração temeroso, olhos deficientes e uma alma consumida pela tristeza, e a tua vida estará como que pendente diante de ti. Terás medo dia e noite, e não confiarás em tua vida. Pela manhã dirás: 'Quem me dará a noite'? E de noite dirás: 'Quem me dará a manhã'? Por causa do temor de teu coração com o qual serás aterrorizado, e por causa do que verás com os teus olhos". Em resumo: Quem considerasse todos os males dos maus, sejam amigos, sejam inimigos, com sentimento conveniente, este não apenas esqueceria seus males e constataria que nada está sofrendo, mas, na verdade, também desejaria ardentemente, com Moisés e com o apóstolo Paulo, que lhe fosse concedido morrer por eles, tornar-se anátema de Cristo e ser riscado do livro da vida, como está escrito em Rm 9.3, por meio do que aqueles seriam salvos. Ardendo deste zelo e fogo, Cristo por nós morreu e desceu aos infernos, deixando-nos o exemplo, para que também nós estejamos preocupados com os males dos outros desta mesma maneira, esquecidos dos males, sim, que os desejemos.
OBRAS SELECIONADAS DE LUTERO V2 CAPÍTULO 5 PG 24-26 "O PROGRAMA DA REFORMA"